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Propôs-se como principal tarefa formalizar a aritmética, a fim de estabelecer uma passagem contínua entre a lógica e a matemática. Mas, para isso foi preciso tanto encontrar uma definição lógica dos principais conceitos aritméticos, em particular o de número, como refundir os conceitos lógicos fundamentais. Tarefa árdua, que implicava uma reforma geral da visão da lógica e da matemática. | Propôs-se como principal tarefa formalizar a aritmética, a fim de estabelecer uma passagem contínua entre a lógica e a matemática. Mas, para isso foi preciso tanto encontrar uma definição lógica dos principais conceitos aritméticos, em particular o de número, como refundir os conceitos lógicos fundamentais. Tarefa árdua, que implicava uma reforma geral da visão da lógica e da matemática. | ||
Um de seus pontos de partida consistiu em precisar e estender o conceito matemático de função. Segundo as antigas definições, uma função de ''x'' seria uma expressão matemática contendo ''x'', uma fórmula em que a letra ''x'' aparecesse. É evidente a insuficiência de uma definição de tal ordem, que não distingue entre forma e conteúdo, sinal e coisa assinalada, etc. Frege, ao contrário, visa, de um lado à conexão (''Zusammengehörigkeit'') que, por exemplo, a função numérica estabelece entre uma série de números e, de outro, à necessidade de a expressão vir a ser completada, a exigência de ser justaposta a outros | Um de seus pontos de partida consistiu em precisar e estender o conceito matemático de função. Segundo as antigas definições, uma função de ''x'' seria uma expressão matemática contendo ''x'', uma fórmula em que a letra ''x'' aparecesse. É evidente a insuficiência de uma definição de tal ordem, que não distingue entre forma e conteúdo, sinal e coisa assinalada, etc. Frege, ao contrário, visa, de um lado à conexão (''Zusammengehörigkeit'') que, por exemplo, a função numérica estabelece entre uma série de números e, de outro, à necessidade de a expressão vir a ser completada, a exigência de ser justaposta a outros têrmos para poder significar alguma coisa. Por isso, “a expressão de uma ''função'' carece de complemento (''ergänzungsbedürftig''), sendo insatisfeita (''ungesättigt'')”<ref group="I">''Grundgesetze'', I, p. 5.</ref>. | ||
Convém distinguir na função o argumento, que não pertence a ela mas lhe advém para formar um todo, o lugar do argumento e o valor que obtém quando a variável é substituída por uma constante. Na história da matemática, diz Frege, assistimos a uma ampliação cada vez maior dos tipos possíveis de argumento, bastando lembrar na aritmética a introdução de funções com números complexos e, ademais, algumas tentativas de empregar a noção de função operando entre palavras. A reforma de Frege vai mais longe: faz com que expressões da forma ''ξ''<sup>2</sup> = 4 e ''ξ'' > 2, cujos valôres, por exemplo, variam de 0 a 3, possam ser consideradas funções. De fato, essas expressões se apresentam de modo incompleto, possuindo sentido tão-sòmente quando um dos números possíveis vier a ocupar o lugar do argumento. E feita a substituição, obteremos os seguintes resultados: 0<sup>2</sup> = 4, 1<sup>2</sup> = 4, 2<sup>2</sup> = 4, 3<sup>2</sup> = 4, e 0 > 2, 1 > 2, 2 > 2, 3 > 2; expressões que, em geral, são falsas, a não ser duas exceções, uma para cada série. Pois bem, a grande novidade de Frege é pensar ''ξ''<sup>2</sup> = 4 e ''ξ'' > 0 como funções cujos valôres sejam, em lugar de números, os valôres verdadeiro ou falso. Dêsse modo, as expressões 2<sup>2</sup> = 4 e 3 > 2 denotariam o verdadeiro, enquanto as outras denotariam o falso. Com isto se introduz a noção de valor de verdade, uma das maiores conquistas do pensamento lógico contemporâneo. | Convém distinguir na função o argumento, que não pertence a ela mas lhe advém para formar um todo, o lugar do argumento e o valor que obtém quando a variável é substituída por uma constante. Na história da matemática, diz Frege, assistimos a uma ampliação cada vez maior dos tipos possíveis de argumento, bastando lembrar na aritmética a introdução de funções com números complexos e, ademais, algumas tentativas de empregar a noção de função operando entre palavras. A reforma de Frege vai mais longe: faz com que expressões da forma ''ξ''<sup>2</sup> = 4 e ''ξ'' > 2, cujos valôres, por exemplo, variam de 0 a 3, possam ser consideradas funções. De fato, essas expressões se apresentam de modo incompleto, possuindo sentido tão-sòmente quando um dos números possíveis vier a ocupar o lugar do argumento. E feita a substituição, obteremos os seguintes resultados: 0<sup>2</sup> = 4, 1<sup>2</sup> = 4, 2<sup>2</sup> = 4, 3<sup>2</sup> = 4, e 0 > 2, 1 > 2, 2 > 2, 3 > 2; expressões que, em geral, são falsas, a não ser duas exceções, uma para cada série. Pois bem, a grande novidade de Frege é pensar ''ξ''<sup>2</sup> = 4 e ''ξ'' > 0 como funções cujos valôres sejam, em lugar de números, os valôres verdadeiro ou falso. Dêsse modo, as expressões 2<sup>2</sup> = 4 e 3 > 2 denotariam o verdadeiro, enquanto as outras denotariam o falso. Com isto se introduz a noção de valor de verdade, uma das maiores conquistas do pensamento lógico contemporâneo. | ||
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Antes de tudo é preciso salientar que a implicação formal supõe a análise interna da proposição. Ora, essa análise difere totalmente em Frege e em Russell. Para o primeiro a unidade proposicional sempre se resolve num têrmo e num conceito ou, conforme as expressões do segundo, num têrmo e numa asserção. Esta última palavra designa a parte restante da proposição depois de subtraído o têrmo-sujeito, de forma que possui um significado totalmente diferente daquele que o toma como a asseveração do conteúdo proposicional. Para ambos os filósofos, todavia, a proposição configura uma unidade, uma maneira peculiar de totalização de seus elementos. Mas enquanto Frege acredita que a junção do têrmo e do conceito a recompõe, Russell nega que isto ''sempre'' ocorra. Na verdade, em tôdas as proposições de forma sujeito-predicado, a unidade imediatamente se refaz tão logo um têrmo ocupe o lugar do argumento da função. Isto, porém, não acontece em todos os casos de proposições mais complexas. A redução da sentença “todos os homens são mortais” em seus elementos essenciais redunda em afirmar que “para todo ''x'', se ''x'' é homem, então ''x'' é mortal”; a saber, dois conceitos ou asserções, no vocabulário de Russell, são ditos da pseudovariável ''x''. A recomposição da unidade proposicional primitiva, entretanto, esbarra na seguinte dificuldade: ao substituirmos o primeiro ''x'' por uma constante, Sócrates, por exemplo, não temos garantia de que a segunda ocorrência da variável deva ser substituída pela mesma constante. Dado isso, Russell é levado a distinguir asserção e função proposicional, a primeira sendo constituída pelo resto da proposição de que se tirou o têrmo, a segunda sendo formada por ésse mesmo resto tomado, todavia, na sua qualidade de parte da unidade funcional. A resolução em têrmo e asserção não assegura que as partes restantes da proposição não se reduzam a um simples agregado de membros justapostos; só a função proposicional, função cujo valor sempre é uma proposição, garante a peculiaríssima unidade que tôda proposição possui<ref group="I">''Ibid.'', § 137, p. 441, § 482, p. 508.</ref>. | Antes de tudo é preciso salientar que a implicação formal supõe a análise interna da proposição. Ora, essa análise difere totalmente em Frege e em Russell. Para o primeiro a unidade proposicional sempre se resolve num têrmo e num conceito ou, conforme as expressões do segundo, num têrmo e numa asserção. Esta última palavra designa a parte restante da proposição depois de subtraído o têrmo-sujeito, de forma que possui um significado totalmente diferente daquele que o toma como a asseveração do conteúdo proposicional. Para ambos os filósofos, todavia, a proposição configura uma unidade, uma maneira peculiar de totalização de seus elementos. Mas enquanto Frege acredita que a junção do têrmo e do conceito a recompõe, Russell nega que isto ''sempre'' ocorra. Na verdade, em tôdas as proposições de forma sujeito-predicado, a unidade imediatamente se refaz tão logo um têrmo ocupe o lugar do argumento da função. Isto, porém, não acontece em todos os casos de proposições mais complexas. A redução da sentença “todos os homens são mortais” em seus elementos essenciais redunda em afirmar que “para todo ''x'', se ''x'' é homem, então ''x'' é mortal”; a saber, dois conceitos ou asserções, no vocabulário de Russell, são ditos da pseudovariável ''x''. A recomposição da unidade proposicional primitiva, entretanto, esbarra na seguinte dificuldade: ao substituirmos o primeiro ''x'' por uma constante, Sócrates, por exemplo, não temos garantia de que a segunda ocorrência da variável deva ser substituída pela mesma constante. Dado isso, Russell é levado a distinguir asserção e função proposicional, a primeira sendo constituída pelo resto da proposição de que se tirou o têrmo, a segunda sendo formada por ésse mesmo resto tomado, todavia, na sua qualidade de parte da unidade funcional. A resolução em têrmo e asserção não assegura que as partes restantes da proposição não se reduzam a um simples agregado de membros justapostos; só a função proposicional, função cujo valor sempre é uma proposição, garante a peculiaríssima unidade que tôda proposição possui<ref group="I">''Ibid.'', § 137, p. 441, § 482, p. 508.</ref>. | ||
Descobrimos no fundo desta separação o mesmo preconceito de Russell, responsável pela identificação do predicado como tal e do predicado como sujeito. O problema do âmbito de variação de uma variável foi, na história da lógica, resolvido de maneiras diferentes. A admissão de substâncias segundas, por Aristóteles, delimitava imediatamente todos os argumentos da função “''x'' é homem”, seu campo de variação não indo além das pessoas reais ou possíveis. Embora negando tais substâncias, Frege também caminha no sentido de estabelecer certas limitações no domínio das variáveis, aceitando vários tipos de variabilidade e, por conseguinte, sedimentando os conceitos em ordens diferentes<ref group="I">''Ibid.'', § 482, pp. 508-9.</ref>. Russell, entretanto, mantém uma variabilidade indiscriminada, postulando que “tôdas as funções que não podem ser valôres de variáveis de uma função de primeira ordem não são entidades mas falsas abstrações”<ref group="I">''Ibid.'', § 482, p. 509.</ref>, o que implica em afirmar que o predicado que não puder ser identificado com um sujeito é uma abstração desprovida de sentido. Isto redunda em negar a possibilidade de conceitos de segunda ordem e, por conse guinte, o balizamento das variáveis. Daí precisar atribuir à proposição o papel desempenhado por esse balizamento, de sorte que ela passa a possuir uma unidade totalizante que o | Descobrimos no fundo desta separação o mesmo preconceito de Russell, responsável pela identificação do predicado como tal e do predicado como sujeito. O problema do âmbito de variação de uma variável foi, na história da lógica, resolvido de maneiras diferentes. A admissão de substâncias segundas, por Aristóteles, delimitava imediatamente todos os argumentos da função “''x'' é homem”, seu campo de variação não indo além das pessoas reais ou possíveis. Embora negando tais substâncias, Frege também caminha no sentido de estabelecer certas limitações no domínio das variáveis, aceitando vários tipos de variabilidade e, por conseguinte, sedimentando os conceitos em ordens diferentes<ref group="I">''Ibid.'', § 482, pp. 508-9.</ref>. Russell, entretanto, mantém uma variabilidade indiscriminada, postulando que “tôdas as funções que não podem ser valôres de variáveis de uma função de primeira ordem não são entidades mas falsas abstrações”<ref group="I">''Ibid.'', § 482, p. 509.</ref>, o que implica em afirmar que o predicado que não puder ser identificado com um sujeito é uma abstração desprovida de sentido. Isto redunda em negar a possibilidade de conceitos de segunda ordem e, por conse guinte, o balizamento das variáveis. Daí precisar atribuir à proposição o papel desempenhado por esse balizamento, de sorte que ela passa a possuir uma unidade totalizante que o têrmo e o conceito (a asserção) nem sempre são capazes de reproduzir. | ||
A asserção, a função proposicional e a implicação material, entendida como relação originária, configuram, portanto, três noções primitivas. As duas últimas explicam a implicação formal: no exemplo anterior, a unidade do argumento que. substitui as várias ocorrências de ''x'' é garantida pela unidade da proposição singular em que êle se inscreve. Colocado êsse ponto de partida, a implicação formal se resume numa classe, num feixe de implicações materiais<ref group="I">''Ibid.'', § 42, p. 38.</ref>. Todo o pêso da variação cai, dêsse modo, sôbre a implicação material; “Para todos os ''x'', se ''x'' é homem, então ''x'' é mortal” é uma proposição gerada por sentenças singulares do tipo “Se Sócrates é homem, então Sócrates é mortal”. | A asserção, a função proposicional e a implicação material, entendida como relação originária, configuram, portanto, três noções primitivas. As duas últimas explicam a implicação formal: no exemplo anterior, a unidade do argumento que. substitui as várias ocorrências de ''x'' é garantida pela unidade da proposição singular em que êle se inscreve. Colocado êsse ponto de partida, a implicação formal se resume numa classe, num feixe de implicações materiais<ref group="I">''Ibid.'', § 42, p. 38.</ref>. Todo o pêso da variação cai, dêsse modo, sôbre a implicação material; “Para todos os ''x'', se ''x'' é homem, então ''x'' é mortal” é uma proposição gerada por sentenças singulares do tipo “Se Sócrates é homem, então Sócrates é mortal”. | ||
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No entanto, já o apêndice ''A'' dos ''Principles'' reformula esta teoria simplista. Russell se defrontara com o seguinte argumento de Frege que parecia comprovar a exclusividade do ponto de vista intensional: se ''a'' fôr uma classe de mais de um têrmo, e se ''a'' fôr idêntica à classe cujo único têrmo é ''a'', então ser um têrmo de ''a'' é a mesma coisa do que ser um têrmo da classe cujo único têrmo é ''a'', pois ''a'' é o único têrmo de ''a''<ref group="I">''Ibid.'', § 487, p. 513.</ref>. Tudo gira em tôrno da unidade da classe e da classe una; feita a identificação de ambas, surge imediatamente o paradoxo de atribuir uma multiplicação à unidade e ''vice-versa''. Russell entrevê duas possibilidades para sua solução: 1) a coleção de mais do que um têrmo não é idêntica à coleção cujo único têrmo é ''a''; 2) não há uma coleção de um têrmo no caso de uma coleção de muitos têrmos, mas a coleção é estritamente múltipla. O primeiro caminho é trilhado por Frege, que considera o percurso de valor uma única unidade formada pela passagem da equivalência à identidade, — o segundo é reafirmado pelo próprio Russell. | No entanto, já o apêndice ''A'' dos ''Principles'' reformula esta teoria simplista. Russell se defrontara com o seguinte argumento de Frege que parecia comprovar a exclusividade do ponto de vista intensional: se ''a'' fôr uma classe de mais de um têrmo, e se ''a'' fôr idêntica à classe cujo único têrmo é ''a'', então ser um têrmo de ''a'' é a mesma coisa do que ser um têrmo da classe cujo único têrmo é ''a'', pois ''a'' é o único têrmo de ''a''<ref group="I">''Ibid.'', § 487, p. 513.</ref>. Tudo gira em tôrno da unidade da classe e da classe una; feita a identificação de ambas, surge imediatamente o paradoxo de atribuir uma multiplicação à unidade e ''vice-versa''. Russell entrevê duas possibilidades para sua solução: 1) a coleção de mais do que um têrmo não é idêntica à coleção cujo único têrmo é ''a''; 2) não há uma coleção de um têrmo no caso de uma coleção de muitos têrmos, mas a coleção é estritamente múltipla. O primeiro caminho é trilhado por Frege, que considera o percurso de valor uma única unidade formada pela passagem da equivalência à identidade, — o segundo é reafirmado pelo próprio Russell. | ||
A primitiva teoria das classes obedecia a um princípio lógico, cuja formulação, contudo<ref group="I">Cf. ''ibid.'', § 70, p. 69, nota.</ref>, não aparecia no corpo da obra. O princípio é o seguinte: uma pluralidade de têrmos não é um sujeito lógico quando um número é assertado dela; tais proposições não têm um sentido mas muitos — o que equivale a destruir a unidade visível do sujeito enquanto | A primitiva teoria das classes obedecia a um princípio lógico, cuja formulação, contudo<ref group="I">Cf. ''ibid.'', § 70, p. 69, nota.</ref>, não aparecia no corpo da obra. O princípio é o seguinte: uma pluralidade de têrmos não é um sujeito lógico quando um número é assertado dela; tais proposições não têm um sentido mas muitos — o que equivale a destruir a unidade visível do sujeito enquanto têrmo em proveito da multiplicidade de sua denotação. O argumento de Frege, porém, demanda uma redução em seu âmbito. “O sujeito de uma proposição pode não ser um têrmo singular, afirma Russell em seu apêndice contra Frege, mas pode essencialmente ser formado por múltiplos têrmos; êste é o caso de tôdas as proposições que assertam números além de 0 e 1. Mas os predicados, conceitos-classes ou relações que podem ocorrer nas proposições que possuem sujeitos plurais são diferentes (com algumas exceções) daqueles que podem ocorrer nas proposições que possuem têrmos singulares como sujeitos. Embora a classe seja múltipla e não una, há identidade e diversidade entre as classes, de sorte que as classes podem ser contadas como se fôssem unidades genuínas. Neste sentido podemos falar de ''uma'' classe e das classes que são membros de uma classe de classe. ''Um'' deve ser tomado, entretanto, como sendo algo diferente quando é assertado de uma classe e quando é assertado de um têrmo; há um sentido de ''um'' que é utilizável quando se refere a ''um têrmo'' e outro quando se refere a ''uma'' classe, embora haja também um têrmo geral aplicável a ambos os casos. A doutrina básica sobre a qual tudo se assenta é que o sujeito de uma proposição pode ser plural e que tais sujeitos plurais são o que as classes significam quando possuem mais de um têrmo”<ref group="I">''Ibid.'', § 490, pp. 516–7.</ref>. Permanece a mesma exigência do têrmo-sujeito poder denotar uma multiplicidade de objetos, mas Russell agora reconhece a possibilidade de se tomar essa multiplicidade como uma unidade legítima do ponto de vista matemático, em que pêse à destruição da univocidade do sentido da palavra “um”. Só assim se evita o paradoxo das classes, pois na proposição “''x'' pertence a ''x''”, a unidade do primeiro ''x'' não é dita da mesma maneira do que a unidade do segundo. | ||
Logo em seguida encontramos uma explicitação do próprio Russell: “conforme o ponto de vista defendido aqui será necessário, para cada variável, indicar se o campo de significação consiste em têrmos, classe, classe de classes e assim por diante”<ref group="I">''Ibid.'', § 492, p. 518.</ref>, o que implica uma estratificação dos objetos que prenuncia a teoria dos tipos. Em lugar da estratificação dos conceitos, defendida por Frege, temos agora uma estratificação dos objetos lógicos e, por conseguinte, a destruição da unidade postulada pelo têrmo sujeito. Dêsse modo, paulatinamente o problema da objetividade correspondente ao | Logo em seguida encontramos uma explicitação do próprio Russell: “conforme o ponto de vista defendido aqui será necessário, para cada variável, indicar se o campo de significação consiste em têrmos, classe, classe de classes e assim por diante”<ref group="I">''Ibid.'', § 492, p. 518.</ref>, o que implica uma estratificação dos objetos que prenuncia a teoria dos tipos. Em lugar da estratificação dos conceitos, defendida por Frege, temos agora uma estratificação dos objetos lógicos e, por conseguinte, a destruição da unidade postulada pelo têrmo sujeito. Dêsse modo, paulatinamente o problema da objetividade correspondente ao têrmo passa a vincular-se ao problema da edificação de um sistema formal, desvencilhando-se dos dados fornecidos pela. intuição para ligar-se ao contexto lógico. Está aberto o caminho que desembocará na doutrina dos ''Principia'', em que a classe e as constantes lógicas serão concebidas como símbolos incompletos cuja significação está na mais estreita dependência do sistema. | ||
=== III — Alguns aspectos semânticos dos Principia. === | === III — Alguns aspectos semânticos dos Principia. === | ||
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Existe, porém, uma dificuldade de que o próprio Wittgenstein se deu conta. Para mostrar o que deve ser mostrado além do discurso, para indicar a indizibilidade das formas lógicas é preciso falar, ainda que a fala seja absurda. E o ''Tractatus'' é essa linguagem absurda que há de ser abolida no final, quando o discurso se enquadrar nos estreitos limites da figuração do mundo. Obra de passagem, não cabe atribuir-lhe demasiada importância. | Existe, porém, uma dificuldade de que o próprio Wittgenstein se deu conta. Para mostrar o que deve ser mostrado além do discurso, para indicar a indizibilidade das formas lógicas é preciso falar, ainda que a fala seja absurda. E o ''Tractatus'' é essa linguagem absurda que há de ser abolida no final, quando o discurso se enquadrar nos estreitos limites da figuração do mundo. Obra de passagem, não cabe atribuir-lhe demasiada importância. | ||
Continuamos, entretanto, a estudá-lo, a analisar uma por uma suas proposições como se elas dissessem algo. Não é então para duvidar dêste seu princípio básico que elimina da lingua tôda sorte de reflexão? Acresce ainda que nenhuma linguagem matemática obedece rigorosamente a estratificação dos tipos, estabelecida por Russell e levada aos últimos limites por Wittgenstein. E o próprio desenvolvimento da lógica moderna cada vez mais nos convence de que a teoria dos tipos foi uma solução artificial, gerada por uma concepção absolutista da matemática, que hoje dificilmente encontra guarida, principalmente quando o método axiomático perdeu a auréola de que se revestia no início do século. Mas admitir a reflexão no seio do discurso, a possibilidade de o predicado tornar-se sujeito e nesse processo sua denotação adquirir a unidade e a espessura de uma certa objetividade, tem como conseqüência, não apenas recair no enrêdo dos paradoxos, mas, sobretudo, recolocar a problemática da filosofia da linguagem em | Continuamos, entretanto, a estudá-lo, a analisar uma por uma suas proposições como se elas dissessem algo. Não é então para duvidar dêste seu princípio básico que elimina da lingua tôda sorte de reflexão? Acresce ainda que nenhuma linguagem matemática obedece rigorosamente a estratificação dos tipos, estabelecida por Russell e levada aos últimos limites por Wittgenstein. E o próprio desenvolvimento da lógica moderna cada vez mais nos convence de que a teoria dos tipos foi uma solução artificial, gerada por uma concepção absolutista da matemática, que hoje dificilmente encontra guarida, principalmente quando o método axiomático perdeu a auréola de que se revestia no início do século. Mas admitir a reflexão no seio do discurso, a possibilidade de o predicado tornar-se sujeito e nesse processo sua denotação adquirir a unidade e a espessura de uma certa objetividade, tem como conseqüência, não apenas recair no enrêdo dos paradoxos, mas, sobretudo, recolocar a problemática da filosofia da linguagem em têrmos diferentes daqueles em que Wittgenstein e os neopositivistas colocaram. Não há mais a separação radical e absoluta entre o discurso e o real, de modo que os caminhos de Frege e de Husserl voltam a ter viabilidade. A não ser que, conduzidos pelo próprio Wittgenstein, enveredemos por uma concepção fragmentada e utilitarista da linguagem, como acontece em suas últimas obras, em que a significação é determinada pelo uso e seu alcance é descoberto pelo emprego sistemático de certos jogos lingüísticos. | ||
Convém ainda lembrar que a teoria da significação desenvolvida no ''Tractatus'' pressupõe a decidibilidade de tôdas as proposições, isto é, que sempre possamos dizer de uma sentença corretamente formada se é falsa ou verdadeira. Na raiz da objeção de Wittgenstein contra a teoria do juízo de Russell encontra-se o pressuposto de que sempre será possível determinar o valor de verdade da proposição. Ora, em 1931 Gödel mostrou que proposições aritméticas elementares não podiam ser demonstradas na base de um sistema axiomático completo, não sendo pois possível decidir-se de sua verdade ou falsidade, utilizando únicamente processos postos à disposição pelo sistema. O princípio em que Wittgenstein assentara o ''Tractatus'' cai por terra; sòmente o cálculo proposicional e outros cálculos menores que, todavia, não esgotam a complexidade do discurso matemático, estão em condição de aproximar a significação dos valôres de verdade. | Convém ainda lembrar que a teoria da significação desenvolvida no ''Tractatus'' pressupõe a decidibilidade de tôdas as proposições, isto é, que sempre possamos dizer de uma sentença corretamente formada se é falsa ou verdadeira. Na raiz da objeção de Wittgenstein contra a teoria do juízo de Russell encontra-se o pressuposto de que sempre será possível determinar o valor de verdade da proposição. Ora, em 1931 Gödel mostrou que proposições aritméticas elementares não podiam ser demonstradas na base de um sistema axiomático completo, não sendo pois possível decidir-se de sua verdade ou falsidade, utilizando únicamente processos postos à disposição pelo sistema. O princípio em que Wittgenstein assentara o ''Tractatus'' cai por terra; sòmente o cálculo proposicional e outros cálculos menores que, todavia, não esgotam a complexidade do discurso matemático, estão em condição de aproximar a significação dos valôres de verdade. |