6,094
edits
No edit summary |
No edit summary |
||
Line 48: | Line 48: | ||
A indeterminação do sentido e da denotação é comum nas línguas correntes; a linguagem artificial, porém, deve evitá-la, cada nome havendo de possuir sentido e denotação precisos. Ambas as línguas, contudo, apresentam a mesma estrutura ternária; primeiro, a camada material dos sinais falados ou escritos; segundo, o véu dos sentidos e, finalmente, o conjunto de objetos denotados. Concepção de extrema importância por causa de seu alcance teórico e de suas repercussões históricas. Assim é que está na base da teoria fenomenológica da linguagem, a única doutrina que atualmente tem condições de resistir à avalanche da semiótica behaviorista que, ao contrário das teses de Frege e de Husserl, distingue na linguagem apenas a camada de sinais e os objetos denotados. O ato da palavra vincular-se-ia diretamente às coisas sem necessitar da camada ideal das significações, reduzindo-se, portanto, ao esquema do reflexo condicionado. | A indeterminação do sentido e da denotação é comum nas línguas correntes; a linguagem artificial, porém, deve evitá-la, cada nome havendo de possuir sentido e denotação precisos. Ambas as línguas, contudo, apresentam a mesma estrutura ternária; primeiro, a camada material dos sinais falados ou escritos; segundo, o véu dos sentidos e, finalmente, o conjunto de objetos denotados. Concepção de extrema importância por causa de seu alcance teórico e de suas repercussões históricas. Assim é que está na base da teoria fenomenológica da linguagem, a única doutrina que atualmente tem condições de resistir à avalanche da semiótica behaviorista que, ao contrário das teses de Frege e de Husserl, distingue na linguagem apenas a camada de sinais e os objetos denotados. O ato da palavra vincular-se-ia diretamente às coisas sem necessitar da camada ideal das significações, reduzindo-se, portanto, ao esquema do reflexo condicionado. | ||
A comparação das expressões de tipo 2''x'' e 2''x'' = ''y'' revela ainda outra distinção fundamental, agora no que respeita a seus valôres: os da primeira são números e os da segunda são valôres de verdade. Dado isso, é possível a definição lógica do conceito que o identifica à função cujos valôres são sempre valôres de verdade. Dêsse modo, o conceito apresenta uma estrutura incompleta, nomeadamente predicativa, a tal ponto que tudo o que não possuir tal caráter é transformado em objeto. Entre os conceitos e os nomes surge, pois, uma clivagem que separa, de um lado, as expressões completas (os nomes na sua acepção mais ampla), a que corresponde | A comparação das expressões de tipo 2''x'' e 2''x'' = ''y'' revela ainda outra distinção fundamental, agora no que respeita a seus valôres: os da primeira são números e os da segunda são valôres de verdade. Dado isso, é possível a definição lógica do conceito que o identifica à função cujos valôres são sempre valôres de verdade. Dêsse modo, o conceito apresenta uma estrutura incompleta, nomeadamente predicativa, a tal ponto que tudo o que não possuir tal caráter é transformado em objeto. Entre os conceitos e os nomes surge, pois, uma clivagem que separa, de um lado, as expressões completas (os nomes na sua acepção mais ampla), a que corresponde tôda sorte de objetividade, e de outro, as expressões incompletadas que dizem respeito a objetos em geral. É de notar que essa clivagem é lògicamente definida e substitui a divisão aristotélica entre sujeito e predicado, considerada por Frege de natureza psicológica<ref group="I">''Translations from Philosophical Writings of Gottlob Frege'', p. 3.</ref>: tôda expressão incompleta, graças à transformação quer do sujeito quer do predicado em variável, forma um conceito, desde que seus valôres sejam sempre ou o verdadeiro ou o falso. | ||
Isso pôsto, seguem-se conseqüências as mais imprevisíveis. Primeiramente é preciso distinguir a relação que um argumento mantém com a função (relação subter, ou ∈ na notação de Peano), da relação que um conteúdo mantém com outro mais extenso (relação sub ou de inclusão)<ref group="I">''Ibid.'', p. 94.</ref>. A antiga noção filosófica de subsunção, a relação que o conceito mantém com seus elementos, entendida na base da relação entre predicado e sujeito, dá lugar a duas noções totalmente distintas que revolucionam a teoria do juízo. Assim é que “Sócrates é mortal”, onde o argumento “Sócrates” satisfaz a função “... é mortal”, não pode mais ser posta no mesmo nível, como fazia a silogística tradicional, com a proposição “Todos os homens são mortais”, em que dois conceitos são relacionados em virtude de suas respectivas extensões. Do mesmo modo, a relação de parte e todo a que, desde Aristóteles, estava subordinada a noção de conceito, perde importância para a lógica em vista de sua ambigüidade. Os diagramas de Euler constituem apenas uma analogia imperfeita das verdadeiras relações que as proposições no silogismo mantêm entre si<ref group="I">''Ibid.'', p. 106.</ref>. | Isso pôsto, seguem-se conseqüências as mais imprevisíveis. Primeiramente é preciso distinguir a relação que um argumento mantém com a função (relação subter, ou ∈ na notação de Peano), da relação que um conteúdo mantém com outro mais extenso (relação sub ou de inclusão)<ref group="I">''Ibid.'', p. 94.</ref>. A antiga noção filosófica de subsunção, a relação que o conceito mantém com seus elementos, entendida na base da relação entre predicado e sujeito, dá lugar a duas noções totalmente distintas que revolucionam a teoria do juízo. Assim é que “Sócrates é mortal”, onde o argumento “Sócrates” satisfaz a função “... é mortal”, não pode mais ser posta no mesmo nível, como fazia a silogística tradicional, com a proposição “Todos os homens são mortais”, em que dois conceitos são relacionados em virtude de suas respectivas extensões. Do mesmo modo, a relação de parte e todo a que, desde Aristóteles, estava subordinada a noção de conceito, perde importância para a lógica em vista de sua ambigüidade. Os diagramas de Euler constituem apenas uma analogia imperfeita das verdadeiras relações que as proposições no silogismo mantêm entre si<ref group="I">''Ibid.'', p. 106.</ref>. | ||
Line 125: | Line 125: | ||
No entanto, já o apêndice ''A'' dos ''Principles'' reformula esta teoria simplista. Russell se defrontara com o seguinte argumento de Frege que parecia comprovar a exclusividade do ponto de vista intensional: se ''a'' fôr uma classe de mais de um têrmo, e se ''a'' fôr idêntica à classe cujo único têrmo é ''a'', então ser um têrmo de ''a'' é a mesma coisa do que ser um têrmo da classe cujo único têrmo é ''a'', pois ''a'' é o único têrmo de ''a''<ref group="I">''Ibid.'', § 487, p. 513.</ref>. Tudo gira em tôrno da unidade da classe e da classe una; feita a identificação de ambas, surge imediatamente o paradoxo de atribuir uma multiplicação à unidade e ''vice-versa''. Russell entrevê duas possibilidades para sua solução: 1) a coleção de mais do que um têrmo não é idêntica à coleção cujo único têrmo é ''a''; 2) não há uma coleção de um têrmo no caso de uma coleção de muitos têrmos, mas a coleção é estritamente múltipla. O primeiro caminho é trilhado por Frege, que considera o percurso de valor uma única unidade formada pela passagem da equivalência à identidade, — o segundo é reafirmado pelo próprio Russell. | No entanto, já o apêndice ''A'' dos ''Principles'' reformula esta teoria simplista. Russell se defrontara com o seguinte argumento de Frege que parecia comprovar a exclusividade do ponto de vista intensional: se ''a'' fôr uma classe de mais de um têrmo, e se ''a'' fôr idêntica à classe cujo único têrmo é ''a'', então ser um têrmo de ''a'' é a mesma coisa do que ser um têrmo da classe cujo único têrmo é ''a'', pois ''a'' é o único têrmo de ''a''<ref group="I">''Ibid.'', § 487, p. 513.</ref>. Tudo gira em tôrno da unidade da classe e da classe una; feita a identificação de ambas, surge imediatamente o paradoxo de atribuir uma multiplicação à unidade e ''vice-versa''. Russell entrevê duas possibilidades para sua solução: 1) a coleção de mais do que um têrmo não é idêntica à coleção cujo único têrmo é ''a''; 2) não há uma coleção de um têrmo no caso de uma coleção de muitos têrmos, mas a coleção é estritamente múltipla. O primeiro caminho é trilhado por Frege, que considera o percurso de valor uma única unidade formada pela passagem da equivalência à identidade, — o segundo é reafirmado pelo próprio Russell. | ||
A primitiva teoria das classes obedecia a um princípio lógico, cuja formulação, contudo<ref group="I">Cf. ''ibid.'', § 70, p. 69, nota.</ref>, não aparecia no corpo da obra. O princípio é o seguinte: uma pluralidade de têrmos não é um sujeito lógico quando um número é assertado dela; tais proposições não têm um sentido mas muitos — o que equivale a destruir a unidade visível do sujeito enquanto têrmo em proveito da multiplicidade de sua denotação. O argumento de Frege, porém, demanda uma redução em seu âmbito. “O sujeito de uma proposição pode não ser um têrmo singular, afirma Russell em seu apêndice contra Frege, mas pode essencialmente ser formado por múltiplos têrmos; êste é o caso de tôdas as proposições que assertam números além de 0 e 1. Mas os predicados, conceitos-classes ou relações que podem ocorrer nas proposições que possuem sujeitos plurais são diferentes (com algumas exceções) daqueles que podem ocorrer nas proposições que possuem têrmos singulares como sujeitos. Embora a classe seja múltipla e não una, há identidade e diversidade entre as classes, de sorte que as classes podem ser contadas como se fôssem unidades genuínas. Neste sentido podemos falar de ''uma'' classe e das classes que são membros de uma classe de classe. ''Um'' deve ser tomado, entretanto, como sendo algo diferente quando é assertado de uma classe e quando é assertado de um têrmo; há um sentido de ''um'' que é utilizável quando se refere a ''um têrmo'' e outro quando se refere a ''uma'' classe, embora haja também um têrmo geral aplicável a ambos os casos. A doutrina básica | A primitiva teoria das classes obedecia a um princípio lógico, cuja formulação, contudo<ref group="I">Cf. ''ibid.'', § 70, p. 69, nota.</ref>, não aparecia no corpo da obra. O princípio é o seguinte: uma pluralidade de têrmos não é um sujeito lógico quando um número é assertado dela; tais proposições não têm um sentido mas muitos — o que equivale a destruir a unidade visível do sujeito enquanto têrmo em proveito da multiplicidade de sua denotação. O argumento de Frege, porém, demanda uma redução em seu âmbito. “O sujeito de uma proposição pode não ser um têrmo singular, afirma Russell em seu apêndice contra Frege, mas pode essencialmente ser formado por múltiplos têrmos; êste é o caso de tôdas as proposições que assertam números além de 0 e 1. Mas os predicados, conceitos-classes ou relações que podem ocorrer nas proposições que possuem sujeitos plurais são diferentes (com algumas exceções) daqueles que podem ocorrer nas proposições que possuem têrmos singulares como sujeitos. Embora a classe seja múltipla e não una, há identidade e diversidade entre as classes, de sorte que as classes podem ser contadas como se fôssem unidades genuínas. Neste sentido podemos falar de ''uma'' classe e das classes que são membros de uma classe de classe. ''Um'' deve ser tomado, entretanto, como sendo algo diferente quando é assertado de uma classe e quando é assertado de um têrmo; há um sentido de ''um'' que é utilizável quando se refere a ''um têrmo'' e outro quando se refere a ''uma'' classe, embora haja também um têrmo geral aplicável a ambos os casos. A doutrina básica sôbre a qual tudo se assenta é que o sujeito de uma proposição pode ser plural e que tais sujeitos plurais são o que as classes significam quando possuem mais de um têrmo”<ref group="I">''Ibid.'', § 490, pp. 516–7.</ref>. Permanece a mesma exigência do têrmo-sujeito poder denotar uma multiplicidade de objetos, mas Russell agora reconhece a possibilidade de se tomar essa multiplicidade como uma unidade legítima do ponto de vista matemático, em que pêse à destruição da univocidade do sentido da palavra “um”. Só assim se evita o paradoxo das classes, pois na proposição “''x'' pertence a ''x''”, a unidade do primeiro ''x'' não é dita da mesma maneira do que a unidade do segundo. | ||
Logo em seguida encontramos uma explicitação do próprio Russell: “conforme o ponto de vista defendido aqui será necessário, para cada variável, indicar se o campo de significação consiste em têrmos, classe, classe de classes e assim por diante”<ref group="I">''Ibid.'', § 492, p. 518.</ref>, o que implica uma estratificação dos objetos que prenuncia a teoria dos tipos. Em lugar da estratificação dos conceitos, defendida por Frege, temos agora uma estratificação dos objetos lógicos e, por conseguinte, a destruição da unidade postulada pelo têrmo sujeito. Dêsse modo, paulatinamente o problema da objetividade correspondente ao têrmo passa a vincular-se ao problema da edificação de um sistema formal, desvencilhando-se dos dados fornecidos pela intuição para ligar-se ao contexto lógico. Está aberto o caminho que desembocará na doutrina dos ''Principia'', em que a classe e as constantes lógicas serão concebidas como símbolos incompletos cuja significação está na mais estreita dependência do sistema. | Logo em seguida encontramos uma explicitação do próprio Russell: “conforme o ponto de vista defendido aqui será necessário, para cada variável, indicar se o campo de significação consiste em têrmos, classe, classe de classes e assim por diante”<ref group="I">''Ibid.'', § 492, p. 518.</ref>, o que implica uma estratificação dos objetos que prenuncia a teoria dos tipos. Em lugar da estratificação dos conceitos, defendida por Frege, temos agora uma estratificação dos objetos lógicos e, por conseguinte, a destruição da unidade postulada pelo têrmo sujeito. Dêsse modo, paulatinamente o problema da objetividade correspondente ao têrmo passa a vincular-se ao problema da edificação de um sistema formal, desvencilhando-se dos dados fornecidos pela intuição para ligar-se ao contexto lógico. Está aberto o caminho que desembocará na doutrina dos ''Principia'', em que a classe e as constantes lógicas serão concebidas como símbolos incompletos cuja significação está na mais estreita dependência do sistema. |