Tractatus Logico-Philosophicus (português): Difference between revisions

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Há certos exemplos da nominalização do conceito que nos conduzem diretamente a uma contradição: ao afirmarmos “o conceito de cavalo não é conceito” estamos negando o caráter predicativo do conceito exatamente no momento em que o denominamos conceito<ref group="I">''Principles'', § 49, p. 46.</ref>. Vimos que a solução de Frege implica em distinguir o conceito enquanto predicado e o conceito nominalizado enquanto sujeito, o qual se refere, pelo fato de ser sujeito, a uma certa forma de objetividade. É óbvio que o realismo enraizado de Russell e a utilização sistemática do lema de Occam procurariam evitar a todo custo uma resposta de tal ordem. É nesse sentido que prefere identificar o conceito como predicado ao conceito como sujeito, em que pêse às diferenças evidentes que, descuradas pela lógica, são tratadas como problemas psicológicos ou meramente gramaticais. Negando tudo o que pudesse assemelhar-se à substância segunda de Aristóteles, a lógica não há, pois, de distinguir “é” de “ser”, “humano” de “humanidade”, etc. Feita esta identificação, como manter, porém, a separação entre têrmo e conceito? No que implica um núcleo significativo passar do predicado para o sujeito e ''vice-versa'', sem sofrer a mínima alteração que importe à lógica? Não há dúvida de que há têrmos, como os nomes próprios, que só podem ser tomados como sujeitos, e Russell está de acordo em ampliar o emprêgo do nome próprio, fazendo-o designar pontos num espaço não-euclidiano, personagens fictícios de um romance, etc. Mas é preciso levar em consideração que certos conceitos, em particular os adjetivos, já que os verbos podem ser interpretados como meras relações, designam coisas, de sorte que, sem perderem sua natureza conceitual e predicativa, adquirem uma função aparentemente privativa do nome próprio. E a existência das descrições revela a importância dêsses conceitos designadores, capazes de, graças à uma peculiar vinculação com certos têrmos<ref group="I">''Ibid.'', § 56.</ref>, estabelecerem uma relação mais ampla entre a linguagem e o mundo.
Há certos exemplos da nominalização do conceito que nos conduzem diretamente a uma contradição: ao afirmarmos “o conceito de cavalo não é conceito” estamos negando o caráter predicativo do conceito exatamente no momento em que o denominamos conceito<ref group="I">''Principles'', § 49, p. 46.</ref>. Vimos que a solução de Frege implica em distinguir o conceito enquanto predicado e o conceito nominalizado enquanto sujeito, o qual se refere, pelo fato de ser sujeito, a uma certa forma de objetividade. É óbvio que o realismo enraizado de Russell e a utilização sistemática do lema de Occam procurariam evitar a todo custo uma resposta de tal ordem. É nesse sentido que prefere identificar o conceito como predicado ao conceito como sujeito, em que pêse às diferenças evidentes que, descuradas pela lógica, são tratadas como problemas psicológicos ou meramente gramaticais. Negando tudo o que pudesse assemelhar-se à substância segunda de Aristóteles, a lógica não há, pois, de distinguir “é” de “ser”, “humano” de “humanidade”, etc. Feita esta identificação, como manter, porém, a separação entre têrmo e conceito? No que implica um núcleo significativo passar do predicado para o sujeito e ''vice-versa'', sem sofrer a mínima alteração que importe à lógica? Não há dúvida de que há têrmos, como os nomes próprios, que só podem ser tomados como sujeitos, e Russell está de acordo em ampliar o emprêgo do nome próprio, fazendo-o designar pontos num espaço não-euclidiano, personagens fictícios de um romance, etc. Mas é preciso levar em consideração que certos conceitos, em particular os adjetivos, já que os verbos podem ser interpretados como meras relações, designam coisas, de sorte que, sem perderem sua natureza conceitual e predicativa, adquirem uma função aparentemente privativa do nome próprio. E a existência das descrições revela a importância dêsses conceitos designadores, capazes de, graças à uma peculiar vinculação com certos têrmos<ref group="I">''Ibid.'', § 56.</ref>, estabelecerem uma relação mais ampla entre a linguagem e o mundo.


Êste problema da ''denotação'' tem, para o primeiro Russell, um campo muito mais restrito do que para Frege, pôsto que surge independentemente da problemática do sentido. Para o último filósofo, todos os nomes, inclusive a proposição enquanto nome, apresentam uma face denotativa; para o primeiro, ao contrário, sòmente certos predicados, aliados a certas palavras-chaves, importam uma relação com a objetividade. Tôdas as outras partes da proposição, excetuando-se òbviamente os nomes próprios, estabelecem relações que se consomem únicamente no plano do discurso.
Êste problema da ''denotação'' tem, para o primeiro Russell, um campo muito mais restrito do que para Frege, pôsto que surge independentemente da problemática do sentido. Para o último filósofo, todos os nomes, inclusive a proposição enquanto nome, apresentam uma face denotativa; para o primeiro, ao contrário, sòmente certos predicados, aliados a certas palavras-chaves, importam uma relação com a objetividade. Tôdas as outras partes da proposição, excetuando-se òbviamente os nomes próprios, estabelecem relações que se consomem ùnicamente no plano do discurso.


Um conceito ''denota'' quando, ocorrendo numa proposição, esta não diz respeito ao conceito, mas a respeito do têrmo vinculado, de uma certa maneira, a êsse conceito<ref group="I">''Ibid.'', § 56, p. 53.</ref>. É o que acontece, por exemplo, quando digo: “encontrei um homem”. Como se dá essa passagem do nível do discurso para o nível da coisa? O nome próprio designa diretamente uma coisa ou uma pessoa, mesmo quando é pronunciado isoladamente. Mas na proposição o atributo também é dito da coisa sujeito, implicando, no discurso, um relacionamento com o ser. É a partir dessa propriedade da predicação que Russell elabora sua primeira teoria da denotação: “A noção de denotação pode ser obtida por uma espécie de gênese lógica das proposições sujeito-predicado, das quais parece mais ou menos dependente”<ref group="I">''Ibid.'', § 57, p. 54.</ref>. Sem todavia explicitar o grau e a natureza dessa dependência, Russell forma uma série de frases denotativas, explorando as significações correlatas que o atributo certamente possui. Daí a idéia de uma ''constituição'' das expressões denotativas a partir da denotação mais simples; estranha idéia para quem, como nós, nos acostumamos aos processos de construção exclusivamente formais e sintáticos, deixando de lado as correlações propostas pelos conceitos que se aliam a um conceito originário. Parece estranhável estabelecer um parentesco de conteúdos, mas esta idéia evidentemente ainda pode vir a desempenhar um papel relevante na crítica ao formalismo da lógica contemporânea.
Um conceito ''denota'' quando, ocorrendo numa proposição, esta não diz respeito ao conceito, mas a respeito do têrmo vinculado, de uma certa maneira, a êsse conceito<ref group="I">''Ibid.'', § 56, p. 53.</ref>. É o que acontece, por exemplo, quando digo: “encontrei um homem”. Como se dá essa passagem do nível do discurso para o nível da coisa? O nome próprio designa diretamente uma coisa ou uma pessoa, mesmo quando é pronunciado isoladamente. Mas na proposição o atributo também é dito da coisa sujeito, implicando, no discurso, um relacionamento com o ser. É a partir dessa propriedade da predicação que Russell elabora sua primeira teoria da denotação: “A noção de denotação pode ser obtida por uma espécie de gênese lógica das proposições sujeito-predicado, das quais parece mais ou menos dependente”<ref group="I">''Ibid.'', § 57, p. 54.</ref>. Sem todavia explicitar o grau e a natureza dessa dependência, Russell forma uma série de frases denotativas, explorando as significações correlatas que o atributo certamente possui. Daí a idéia de uma ''constituição'' das expressões denotativas a partir da denotação mais simples; estranha idéia para quem, como nós, nos acostumamos aos processos de construção exclusivamente formais e sintáticos, deixando de lado as correlações propostas pelos conceitos que se aliam a um conceito originário. Parece estranhável estabelecer um parentesco de conteúdos, mas esta idéia evidentemente ainda pode vir a desempenhar um papel relevante na crítica ao formalismo da lógica contemporânea.
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As proposições mais simples são aquelas em que um atributo é dito de um têrmo-sujeito, tais como: “''A'' é”, “''A'' é uno”, “''A'' é humano”. A essas proposições podemos correlacionar outras, diferentes quanto à forma, próximas, contudo, no que respeita ao significado: “''A'' é uma entidade”, “''A'' é uma unidade”, “''A'' é um homem”, “''A'' tem humanidade” e assim por diante. A última proposição exprime nitidamente a relação de um membro com sua classe e deve, por conseguinte, ser excluída das frases denotativas pròpriamente ditas. Examinemos “''A'' é humano” e “''A'' é um homem”. Talvez a diferença seja meramente verbal, convém, entretanto, distinguir o predicado e o conceito a que uma classe está associada<ref group="I">''Ibid.'', § 58, p. 56.</ref>, o qual passaremos a denominar conceito-classe (''class-concept''). Distingue-se òbviamente do conceito de classe como é “humanidade”. Cabe então a pergunta: “um homem” é um conceito ou um têrmo? Rigorosamente falando, nem um nem outro, “mas uma certa espécie de correlação entre certos têrmos, nomeadamente daqueles que são humanos”<ref group="I">''Ibid.'', § 57, p. 54.</ref>. Sob a aparência unitária das palavras “um homem” se esconde, pois, uma reunião de têrmos sob forma disjuntiva: trata-se dêste homem, ou daquele, ou daquele outro, etc.<ref group="I">Ibid., § 60, p. 59.</ref>. Com isto se revela a natureza da frase denotativa: é formada graças à junção do conceito-classe e de uma palavra, no nosso exemplo “um”, que coloca o primeiro em relação com uma multiplicidade de objetos reunidos numa unidade segundo a forma indicada pela segunda<ref group="I">''Ibid.'', § 57, p. 62.</ref>. O mesmo acontece, pois, com “todos os homens”, “cada homem”, “algum homem”, “o homem”, etc., tôdas apresentando ao espírito uma determinada reunião de objetos, obtida conforme um modo peculiar de congraçamento de seus membros. A ''mesma'' relação objetivamente, originária do conceito classe, dirige-se diferentemente a uma soma de objetos, denotando-os de uma forma particular.
As proposições mais simples são aquelas em que um atributo é dito de um têrmo-sujeito, tais como: “''A'' é”, “''A'' é uno”, “''A'' é humano”. A essas proposições podemos correlacionar outras, diferentes quanto à forma, próximas, contudo, no que respeita ao significado: “''A'' é uma entidade”, “''A'' é uma unidade”, “''A'' é um homem”, “''A'' tem humanidade” e assim por diante. A última proposição exprime nitidamente a relação de um membro com sua classe e deve, por conseguinte, ser excluída das frases denotativas pròpriamente ditas. Examinemos “''A'' é humano” e “''A'' é um homem”. Talvez a diferença seja meramente verbal, convém, entretanto, distinguir o predicado e o conceito a que uma classe está associada<ref group="I">''Ibid.'', § 58, p. 56.</ref>, o qual passaremos a denominar conceito-classe (''class-concept''). Distingue-se òbviamente do conceito de classe como é “humanidade”. Cabe então a pergunta: “um homem” é um conceito ou um têrmo? Rigorosamente falando, nem um nem outro, “mas uma certa espécie de correlação entre certos têrmos, nomeadamente daqueles que são humanos”<ref group="I">''Ibid.'', § 57, p. 54.</ref>. Sob a aparência unitária das palavras “um homem” se esconde, pois, uma reunião de têrmos sob forma disjuntiva: trata-se dêste homem, ou daquele, ou daquele outro, etc.<ref group="I">Ibid., § 60, p. 59.</ref>. Com isto se revela a natureza da frase denotativa: é formada graças à junção do conceito-classe e de uma palavra, no nosso exemplo “um”, que coloca o primeiro em relação com uma multiplicidade de objetos reunidos numa unidade segundo a forma indicada pela segunda<ref group="I">''Ibid.'', § 57, p. 62.</ref>. O mesmo acontece, pois, com “todos os homens”, “cada homem”, “algum homem”, “o homem”, etc., tôdas apresentando ao espírito uma determinada reunião de objetos, obtida conforme um modo peculiar de congraçamento de seus membros. A ''mesma'' relação objetivamente, originária do conceito classe, dirige-se diferentemente a uma soma de objetos, denotando-os de uma forma particular.


''b'') Russell interpreta o vínculo que se dá entre a hipótese e a conseqüência da demonstração como uma ''relação'' indefinível a que dá o nome de implicação formal. No entanto, o paradoxo de Lewis Carrol mostra a inoperância desta relação quando se trata de destacar a conclusão e afirmar sua veracidade de per si. De fato, se tivermos “''H'' implica ''T''” e pretendemos obter a verdade de ''T'' únicamente a partir da implicação, cairíamos sob o jugo de um processo reiterante que nunca lograria afirmar apenas ''T''. Graças à implicação, sòmente seria legítimo dizer que “Se ‘''S'' implica ''T''’, então ''T''”, que por sua vez é uma implicação mais complexa do que a primeira. É por isso que Frege e Russell reconhecem a necessidade de uma regra paralela de destacamento, em particular o modus ponens, cuja função é precisamente assertar a verdade de ''T'' a partir da implicação “''H'' implica ''T''”<ref group="I">''Ibid.'', § 38, p. 35.</ref>. Russell, no entanto, ainda não compreendera a importância dessa regra, contentando-se em tomá-la como um dos exemplos das limitações essenciais do formalismo<ref group="I">''Ibid.'', § 18, p. 16.</ref>.
''b'') Russell interpreta o vínculo que se dá entre a hipótese e a conseqüência da demonstração como uma ''relação'' indefinível a que dá o nome de implicação formal. No entanto, o paradoxo de Lewis Carrol mostra a inoperância desta relação quando se trata de destacar a conclusão e afirmar sua veracidade de per si. De fato, se tivermos “''H'' implica ''T''” e pretendemos obter a verdade de ''T'' ùnicamente a partir da implicação, cairíamos sob o jugo de um processo reiterante que nunca lograria afirmar apenas ''T''. Graças à implicação, sòmente seria legítimo dizer que “Se ‘''S'' implica ''T''’, então ''T''”, que por sua vez é uma implicação mais complexa do que a primeira. É por isso que Frege e Russell reconhecem a necessidade de uma regra paralela de destacamento, em particular o modus ponens, cuja função é precisamente assertar a verdade de ''T'' a partir da implicação “''H'' implica ''T''”<ref group="I">''Ibid.'', § 38, p. 35.</ref>. Russell, no entanto, ainda não compreendera a importância dessa regra, contentando-se em tomá-la como um dos exemplos das limitações essenciais do formalismo<ref group="I">''Ibid.'', § 18, p. 16.</ref>.


Tôda a dificuldade se concentra, por conseguinte, na noção de implicação. Em seu debate com Frege, recusa firmemente partir dos valôres de verdade que, a seu ver, nada acrescentam à compreensão do juízo em geral<ref group="I">Ibid., § 478, p. 503.</ref>. E no corpo do tratado descobrimos o porquê de sua insuficiência: “Se ''p'' implica ''q'', se ''p'' é verdadeiro, então ''q'' é verdadeiro, isto é, a verdade de ''p'' implica a verdade de ''q'', portanto se ''q'' é falso, então ''p'' é falso, isto é, a falsidade de ''q'' implica a falsidade de ''p''”. Dêsse modo, a verdade e a falsidade nos dão apenas novas implicações, mas não uma definição da implicação"<ref group="I">''Ibid.'', § 16, pp. 14–15.</ref>, argumento que evidentemente confunde os vários planos da linguagem, situando a implicação no absoluto. Como nessa época nem Scheffer nem Nicod haviam demonstrado a possibilidade da definição cruzada dos conectivos lógicos e a redução de todos êles a um só, resultado obtido muito mais tarde, não foi difícil a Russell tomar a implicação como indefinível.
Tôda a dificuldade se concentra, por conseguinte, na noção de implicação. Em seu debate com Frege, recusa firmemente partir dos valôres de verdade que, a seu ver, nada acrescentam à compreensão do juízo em geral<ref group="I">Ibid., § 478, p. 503.</ref>. E no corpo do tratado descobrimos o porquê de sua insuficiência: “Se ''p'' implica ''q'', se ''p'' é verdadeiro, então ''q'' é verdadeiro, isto é, a verdade de ''p'' implica a verdade de ''q'', portanto se ''q'' é falso, então ''p'' é falso, isto é, a falsidade de ''q'' implica a falsidade de ''p''”. Dêsse modo, a verdade e a falsidade nos dão apenas novas implicações, mas não uma definição da implicação"<ref group="I">''Ibid.'', § 16, pp. 14–15.</ref>, argumento que evidentemente confunde os vários planos da linguagem, situando a implicação no absoluto. Como nessa época nem Scheffer nem Nicod haviam demonstrado a possibilidade da definição cruzada dos conectivos lógicos e a redução de todos êles a um só, resultado obtido muito mais tarde, não foi difícil a Russell tomar a implicação como indefinível.